A Arte do "Vai Que Cola" e as Scooters Elétricas
"Compra sim, pega nada!", disse o vendedor que precisava bater a meta para pagar aluguel de casa
Se há uma força neste mundo que move montanhas, com certeza é a força do vendedor precisando bater meta.
Força tal que é capaz de mover mundos e fundos e que, chegando ao final do mês, se transforma num grande trovão, um esforço estupendo de convencimento e falácias.
Essa força não existe por pura vontade. O que para nós reles mortais parece uma iniciativa intrínseca de natureza avarenta e ambiciosa, por trás ela esconde uma necessidade de sobreviver.
O motivo você provavelmente já conhece: vendedores ganham por comissão. Mas é interessante entender qual a profundidade disso e o impacto que esse modelo gera na relação vendedor-consumidor.
Muitos vendedores só ganham dinheiro se vendem. Segundo a lei trabalhista, o vendedor precisa ganhar no mínimo um salário mínimo no mês, mas todo o resto dos ganhos dele podem ser gerados apenas por comissão de vendas.
Como esse é o modelo de praxe em vendas, você já sabe o que isso significa: se o vendedor não vende bem, ele vai ganhar quase nada de dinheiro no mês. Isso considerando que o patrão dele segue lei trabalhista, porque pode acontecer dele ganhar zero reais.
Como vendedor também é gente e tem muita conta para pagar, ele não pode deixar isso acontecer. Então a comissão serve não só como a cenoura na frente do cavalo, mas também como o chicote na bunda. Ainda mais quando chega no fim do mês.
Só que isso tem uma consequência perversa: ela não alinha interesses de um jeito que é bom pro cliente.
Explico: tudo que é negociado funciona melhor quando você consegue alinhar interesses em uma situação em que possa ser boa para todos os envolvidos. Ou seja, o que o cliente quer é o mesmo que o vendedor quer e aí vocês juntos fazem negócio de maneira que ambos ficam felizes.
Num caso como esse, nós infelizmente não temos alinhamento de interesses: você quer um bom produto, mas o vendedor precisa vender ou ele não paga as contas. Ele não é recompensado por te vender um bom produto nesse modelo, então o interesse dele é diferente do seu.
Isso piora em situações onde o vendedor acredita que nunca mais vai falar contigo na vida. Ele vai querer te vender um produto bom se souber que você vai voltar ali para comprar outro algum dia. Mas e se for algo pontual que você nunca mais vai olhar pra cara dele? Aí, meus colegas, ele tem zero incentivo para te vender algo que é bom. Não a toa que vendedores de colchão e de carro usado tem a fama que tem.
Agora, é importante manter em mente que o vendedor não faz isso porque ele quer te ferrar ou porque ele é “do mal”. O problema é que se ele não te vender ele possivelmente não vai conseguir pagar a conta de luz da casa dele esse mês. A realidade é perversa.
Considerando essa lógica, ele precisa te vender e não importa o que ele te vende. Se a chance for ínfima de você virar um consumidor frequente, então? É nessa condição que ele te vende uma scooter elétrica que não pode rodar na rua, pois depois da venda feita, o problema é seu.
A maioria das scooters elétricas no Brasil está rodando na ilegalidade, e explico melhor isso no vídeo dessa semana.
Ao meu ver, isso só vai conseguir ser corrigido com políticas públicas que mudem essa estrutura de legislação e incentivo. Afinal, já funciona assim com carro e moto: as lojas nem podem vender algo que não pode ser emplacado. Fora das lojas você perde um tanto o controle - o que gera o fenômeno das motos vendidas “só pra rodar” - mas já ajuda se resolver para a maioria dos casos.
Mudando a legislação, se consegue atingir quem realmente causa esse tipo de problema: quem importa as scooters sem emitir RENAVAM. O vendedor que manda o “fica tranqs que pega nada, pode comprar” é uma consequência e não uma causa.
Infelizmente essa parte tem sido difícil de esperar. O que nos resta é lidar com as cartas que temos na mão.
Por isso, tenho algumas práticas que gosto de ter em mente sempre que vou comprar algo onde preciso lidar com vendedores:
Entender do assunto antes de comprar. Eu não posso depender do vendedor para conhecer o produto, pois ele não tem incentivo algum em me vender algo bom - o incentivo dele é vender o que vai dar mais comissão a ele.
Priorizar compras em final de mês. Pois quando está perto do fechamento, é mais importante vender mais itens, mesmo que isso signifique uma comissão menor por item. Melhor vender barato que não vender, então é um momento em que se costuma conseguir bons descontos.
Entender a realidade do vendedor. Ele tem motivo para ser mala e para tentar me empurrar produto. Porém, isso não é motivo para eu ficar irritada e tratá-lo mal. O trabalho dele é puxado e ingrato o suficiente, e se a estrutura de comissão dele é injusta, não é por culpa dele. É uma situação que gera muita insegurança pois a relação de poder entre o vendedor e o comprador é muito desbalanceada. Gentileza ajuda a tornar essa experiência mais confortável para ambos.
Nesse meio tempo… vou ficar de moto mesmo! Mas provavelmente a minha próxima será elétrica.