Há alguns anos eu viajei a turismo para Dubai. Foi um turismo que não era tanto meu estilo, mas teve algo que eu reparei naquele lugar que me trouxe uma reflexão que carrego até hoje.
Dubai é um lugar repleto de experiências artificiais e desenhadas, tal qual um parque de diversões. Mas algo que eu não pude parar de reparar foi nos outdoors e propagandas que se espalhavam pelas ruas da cidade.
Salvo raras exceções, a maioria fazia propaganda de artigos de alto luxo: relógios de marcas tradicionalíssimas, carros que eu só vejo sendo dirigidos por YouTubers de carro e rappers, joias num nível de opulência que eu nem imaginava que existia. Muitas, muitas marcas que eu nunca tinha ouvido falar, de tão chiques que eram.
Aquilo me deixou intrigada. Por que fazer propaganda ali, a céu aberto, para um público geral, de algo que podia ser comprado apenas por uma ínfima minoria? Lugares cheios de turistas e moradores que, por mais que tivessem dinheiro para estar lá, não tinham dinheiro para comprar relógios de meio milhão de dólares e carros de dois milhões.
O motivo era bem mais cruel do que eu queria acreditar: porque eu tenho tão pouco dinheiro em comparação que, naquele momento, era mais negócio fazer propaganda de um produto que tanto eu quanto praticamente todo mundo em volta de mim não compraria nunca. O alvo da propaganda não era eu, e sim a meia dúzia de pessoas que conseguiriam comprar aquilo.
Eu me senti inadequada, como se eu não fosse bem vinda naquele lugar. Nada que era mostrado era para mim. Eu senti um gostinho do que é ser excluído da atividade econômica.
Hoje, eu vejo esse movimento acontecendo aqui no Brasil. Ontem assistindo o Jornal Nacional eu vi uma propaganda profundamente careta e protocolar do Banco Máxima, onde todo o texto era num nível de papo corporativo que fiquei pensando: pra quem é essa propaganda? Essa pessoa assiste o Jornal Nacional? Também vi uma propaganda de Invisalign, um tratamento ortodôntico caríssimo. Quem compra isso assiste o Jornal Nacional?
Comecei a expandir esse pensamento e cheguei no estado do mercado de transporte atual.
Tivemos um crescimento na demanda por meios de transporte individual devido à pandemia. Afinal, ir de ônibus, trem ou metrô traz um risco à saúde que a maioria busca evitar sempre que possível.
Soma isso com a crise atual de semicondutores, a desvalorização da moeda e o empobrecimento da população, e vimos uma série de coisas acontecendo.
Hoje, comprar carro está muito, muito mais caro. Ano passado eu vi que ia subir, mas olha, eu preferia estar errada porque ninguém merece pagar 86 mil reais num Gol. Não é só o carro novo que está nessa: eu paguei 86 mil reais no meu carro ano 14/15 em 2018 e tem carros mais rodados que ele sendo vendidos por mais por aí.
Como em toda crise pesada o que mais acontece é a redução do tamanho da classe média, vamos vendo os modelos que eram nem tão caros, nem tão baratos sendo tirados de mercado. Marcas desistem de produzir no Brasil e começam a importar mais carros - afinal, muita gente que já conseguia comprar importado continua conseguindo. O combustível também subiu de preço, então ser Uber é cada vez mais inviável, o que aumentou o tempo de espera de corridas e tem dificultado para quem gosta de usar o serviço.
Vendo esse cenário, já temos marcas de motos buscando lançar modelos mais acessíveis, como a nova Honda Vision. Bicicletas batem recorde de vendas. Alternativas existem. Para ver em mais detalhes como a moto pode ser vantajosa em economizar, vale ver o vídeo da semana passada:
Mas num mar de ofertas de carros que, em sua boa parte, ultrapassam os 100 mil reais, mais e mais gente vai ser excluído da atividade econômica de comprar um carro novo. Se não conseguirmos retomar o controle do nosso poder de compra, veremos a frota média brasileira envelhecer e a frota nova ser cada vez mais de carros mais luxuosos comprados por poucos.
Já vimos isso acontecer antes: já ouvimos ou vivemos histórias de tempos em que carro novo era inalcançável, andar de carro em si já era um luxo, e as nossas vidas eram mais limitadas. Quando a propaganda da Tectoy mostrava na TV aquele videogame simples que custava mais de meio ano de salário. Hoje, a propaganda de videogame também mostra um videogame que custa mais de meio ano de salário.
O interessante é que, para as marcas, elas vão dar um jeito. Trazer carros mais chiques, dar um jeito de fazer mais dinheiro com financiamentos, elas vão se virar. Para elas, tudo bem fazer a propaganda do produto mais caro e saber que muitas das pessoas que vão ver aquilo não conseguem nem sonhar em comprar aquilo; faz parte do jogo.
Quem não se vira é quem perde a liberdade de escolha e precisa mudar de vida com mudanças que podem ser muito mais drásticas do que apenas ir pro trabalho de bicicleta.
Triste viver em uma era em que a maior sensação é a de retrocesso.